O livro do libanês Assaad Zaidan identificou mil palavras árabes no português. O texto mostra que a influência árabe no Brasil vai muito além da culinária. Termos como tarifa, mascate, alface e lacaio vêm do árabe. Na literatura, além das palavras, é possível ver traços da cultura daquela região na obra de Guimarães Rosa.
Cláudia Abreu
São Paulo – Um árabe chamado Tarif Bem Amer montou um posto fiscal em uma pequena ilha na entrada do estreito de Gibraltar. Era o ano 710. Todos os navios que iam da Europa para a África, do Atlântico para o Mediterrâneo, e vice-versa, pagavam taxas aduaneiras ao comandante. De tanto dizerem expressões como “já paguei o Tarif”, surgiu o termo tarifa. Essa e outras histórias estão no livro “Letras e História: mil palavras árabes na língua portuguesa”, do escritor libanês Assaad Yoessef Zaidan.
A obra proporciona ao leitor uma interessante viagem pela história da língua árabe, seu nascimento, suas longas viagens e sua influência no português falado no Brasil. Além de tarifa, outras 999 palavras aparecem no texto do libanês. Para reuní-las, Zaidan pesquisou em mais de 100 fontes bibliográficas e mais de 200 dicionários. Os cinco mil exemplares de sua biblioteca pessoal não foram o bastante, o escritor mandou buscar exemplares no mundo árabe para complementar o trabalho.
Segundo Zaidan, a idéia do livro nasceu nos anos 70, depois de um encontro com o intelectual Tufic Curban. “Ele me disse que tinha conseguido identificar 700 palavras árabes na língua portuguesa e aquilo ficou na minha cabeça”, conta o escritor. O tempo passou, Zaidan escreveu outros livros em árabe e, em 1991, o primeiro volume em português, “Guerra do Golfo”.
O assunto de Curban, no entanto, nunca foi deixado de lado. As palavras em português cuja pronúncia era parecida com o árabe eram anotadas, cuidadosamente, por Zaidan. Depois, uma a uma, foram confirmadas e incluídas no texto final. O livro, no entanto, não começa por elas, faz uma introdução rápida, porém precisa, sobre as primeiras letras, as primeiras línguas até chegar no árabe.
Zaidan conta, por exemplo, que o árabe é escrito da direita para a esquerda por influência dos fenícios, que, por sua vez, aprenderam com os garimpeiros, que escavavam as minas usando a broca com a mão esquerda e batendo o martelo com a direita. “Essa forma de escavação foi transformada em primeira impressão de textos, que só depois foi passada para o papel. A tinta surgiu pouco tempo antes de Cristo, espremendo carvão com goma”, revela.
A língua árabe data de 1500 anos antes de Cristo, é uma das mais antigas e aperfeiçoadas. “Adquiriu ricas heranças das línguas dos povos das primeiras civilizações e dos impérios que se instalaram no Oriente Médio, como Mesopotâmia, Egito, Síria, Etiópia, Pérsia e Índia”, escreve Zaidan. “Como em qualquer cultura, recebeu várias influências, é fruto de uma miscigenação”, completa.
Poesia
Na primeira parte, o escritor ainda reservou espaço para falar da importância da poesia no desenvolvimento do árabe. “Os árabes, entre todos os povos do mundo, foram os que mais amaram e versificaram a poesia. Cada poeta era representante e defensor de sua tribo, relator de sua história, de glórias e trajetórias dos povos”, escreve. Por meio dos poemas, eles escreviam sobre teologia, filosofia, gramática, contos lendários, astronomia e até matemática e álgebra.
Segundo Zaidan, somente o Alcorão conseguiu fazer com que os árabes esquecessem um pouco a poesia e melhorassem bastante a linguagem em forma de prosa, com frases rimadas e criativas.
Da Península Arábica para a Espanha. Os árabes aproveitaram a divisão interna da Península Ibérica para invadir a região, levaram junto toda a bagagem cultural. Córdoba, na Espanha, destacou-se tanto quanto Constantinopla e Bagdá, reconhecida como a capital cultural do mundo. Analfabetos eram raros na região e em 1130 começaram as traduções de livros científicos árabes para o latim. Obras de médicos famosos como Al Razi e Avicena (Ibn Sena) foram traduzidas.
A relação com os portugueses começou nos anos seguintes. Um grande exemplo está no nome de várias cidades. Alenquer, Almerim, Fátima e Foro vêm do árabe. “Uma dica simples é saber que todas as palavras que começam com ‘al’ têm origem árabe. Pouca gente sabe também que Fátima é o nome da filha do profeta Maomé”, explica.
Literatura
Na Europa, o árabe influenciou grandes personalidades. Miguel de Cervantes, por exemplo, citou muitos provérbios árabes por meio do discurso de Sancho Pança, em “Dom Quixote”. Traços do estilo de poesia árabe também estão nos trabalhos do poeta alemão Goethe, na obra de Dante e de Victor Hugo. O primeiro, leitor do Alcorão, inclusive escreveu o famoso poema “Divã Oriental-Ocidental”.
A influência árabe também está presente em obras de sul-americanos. Os textos do argentino Jorge Luis Borges e do brasileiro João Guimarães Rosa são marcados pela cultura árabe. Milton Hatoun, que escreveu o prefácio do livro de Zaidan, lembra que em “Grande Sertão Veredas”, o personagem Riobaldo conhece a família árabe Assis Wababa em pleno sertão de Minas Gerais.
Ainda na segunda parte do livro, Zaidan conta sobre as duas viagens de dom Pedro II ao mundo árabe. Ele visitou a Palestina, o Líbano, o Egito e a Síria. Foi dom Pedro que deu permissão para os árabes imigrarem para o Brasil. Encerra o capítulo contando a saga das famílias árabes em terras brasileiras. Sobrenomes como Houaiss, Chalita, Nassar e Yázigi aparecem no texto.
O livro de Zaidan está nas livrarias do país desde julho. A publicação foi patrocinada pelo governo do Estado do Pará.
Sobre o escritor
Zaidan nasceu no Líbano Central, veio para o Brasil em 1952, aprendeu o português em Alagoas, como gosta de lembrar. “Aprendi falar ‘ô xente’ e ‘cabra da peste’”, conta. Desde que chegou ao país, escreveu para jornais e revistas árabes, principalmente para os veículos iraquianos, libaneses e sírios. Também foi redator do jornal “Notícias Árabes”, de 1965 a 1969.
Fonte: ANBA
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