O direito de convivência das culturas, etnias e cosmovisões, numa perspectiva islâmica.

Por: Haidar Abu Talib

Para análise e discussão, o Núcleo de Estudos das Américas e o Programa de Estudos e Pesquisas das Religiões do Centro de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,  nos apresenta o seguinte:

“O pluriculturalismo envolve, além das questões complexas sobre interculturalidade, problemas cruciais que esbarram em confrontos de imaginários e cosmovisões. As distorções sociais se acentuam gerando desigualdades, exclusões, violências e corrupções, entre tantos aspectos que desafiam a sobrevivência dos povos e culturas nesses espaços, fragmentados pelo etnocentrismo e pela alteridade.” E comopretende se tornar um espaço de diálogo e reflexão sobre a complexidade das questões interculturais”….”diante da nova e ameaçadora ordem social e cultural que se instalou sob as Américas.”.

Queremos, respeitosamente, compartilhar desse “espaço de diálogo e reflexão sobre a complexidade das questões interculturais.”.

É com alegria pois que, de forma coerente com a nossa fé, invocamos a Deus, Todo Poderoso, dizendo:

Em nome de ALLAH, O MISERICORDIOSOO MISERICORDIADOR*.

(*) Aquele que aplica a Misericórdia.

Que a Paz de Deus esteja com todos os que buscam a orientação!

A diversidade cultural e o respeito ao diferente, quanto às raças, etnias, religiões e culturas, demonstram a real dimensão da existência humana, que infelizmente ainda não foi compreendida. O “ser diferente”não representa “ser inimigo”.   O “ser diferente” não invalida a ação da fraternidade, do amor e do respeito ao próximo como a si próprio. Somos todos seres humanos.

A intenção e a prática que podem proporcionar a harmonia entre todos nós, tem por alicerce um princípio claro: Não existe nenhum ser humano que seja melhor que o outro pela mera alegação de superioridade quanto à raça, gênero, etnicidade, condição social, linhagem ou estirpe familiar, capacidade intelectual ou quaisquer argumentos de autopromoção ou de antropolatria.

Somos  parte da criação como um todo, sujeitos as normas que abrangem tudo o que somos, tudo o que em nós está contido e tudo o que nós cerca. O melhor de todos nós, será aquele que melhor se esmerar na intenção, na sua capacitação, na prática de suas ações, reações e respectivos seus resultados..

Muitos contaminados pela própria arrogância e ambição, ou desviados pelo mal, arvoram-se em superiores, acima de tudo e de todos, porém, nenhum de nós conhece com precisão absoluta o que efetivamente há dentro de nosso próprio eu, quanto mais o que há dentro de nossos semelhantes que conceituamos como diferentes.

Por vezes, imaginamos como justificativa para nossas atitudes, um ringue onde acontece a luta entre o Bem e o mal. Permitimo-nos ser espectadores, imaginando que Deus luta contra o mal e que nada temos a fazer.  Na realidade o mal nada pode contra Deus. O mal visa nos destruir. Contra Deus o mal nada pode.  Mesmo que algumas pessoas acreditem-se capacitadas a legislar de modo expúrio, classificando os seus semelhantes que discordam de seus interesses como “entes do mal”, a Justiça os alcançará e os reconduzirá a sua real posição.

Sobre tudo isto, o conhecimento proporcionado pela Revelação Corânica nos apresenta o seguinte: A perspectiva islâmica nos textos do Alcorão Sagrado:

“Ó humanos, temei a vosso Senhor, que vos criou de um só ser, do qual criou a sua companheira e, de ambos, fez descender inúmeros homens e mulheres. Temei a Allah, em nome do Qual exigis os vossos direitos mútuos e reverenciai os laços de parentesco, porque Allah é vosso Observador.” (4.ª surata, 1ª ayat)

“Criou-vos com prudência dos céus e a terra. Enrola a noite com o dia e enrola o dia com a noite. Tem submetido o sol e a lua; cada qual prosseguirá o seu curso até um término prefixado. Certamente, Ele é o Poderoso, o Indulgentíssimo!  (6) Criou-vos de um só ser; então, criou, do mesmo, a sua esposa,…….Configura-vos paulatinamente no ventre das vossas mães, entre três trevas, (no sentido cumulativo, o âmnio ou membrana, o útero e o ventre, onde se encontra o útero);

(39.ª surata, 4.ª versiculo e 6ª versiculo).

“No princípio os povos constituíam uma só nação.  Então Allah enviou os profetas como alvissareiros e admoestadores e enviou, por eles, o Livro, com a verdade, para dirimir as divergências entre os homens. Porém, aqueles que o receberam só divergiam a seu respeito, depois de lhes terem chegado a evidência, por egoística teimosia.  Porém Allah, com a Sua Graça, orientou os crentes para a verdade quanto àquilo que é a causa da suas divergências;  (2ª surata, 213ª versiculo).

“ó humanos, em verdade Nós vos Criamos de macho e fêmea e Dividimos em povos e tribos para reconhecer-des uns aos outros. O melhor dentre vós é o que melhor observa o determinado por Deus. Sabei que Deus está bem inteirado e é Sapientíssimo.” (49ª surata,  13.ª versiculo).

“…tratai com benevolência vossos pais e parentes, os órfãos e os necessitados; falai ao próximo com benevolência;“ (2.ª Surata, 83.ª versiculo).

“Convoca (os humanos) à senda do teu Senhor com sabedoria e uma bela exortação; dialoga com eles de maneira benevolente, porque o teu Senhor é o mais conhecedor de quem se desvia da Sua senda, assim como é o mais conhecedor dos encaminhados.” (16.ª Surata, 125.ª versiculo).

“Não há imposição quanto à religião porque já se destacou a verdade do erro. Quem renegar o sedutor e crer em Allah, ter-se-á apegado a um firme e inquebrantável sustentáculo, porque Allah é Oniouvinte, Sapientíssimo.”

(2.ª Surata 256.ª versiculo).

O profeta Muhammad (Que a Paz e as Bênçãos de Allah estejam sobre ele) ensinou o seguinte: “A boa palavra equivale uma caridade”.

No Alcorão 527 versículos falam sobre o diálogo.

 

A História, sua função investigatória, para uma compreensão maior:

Na América Latina, o Brasil, país com maior dimensão geográfica e populacional, é formado por uma grande diversidade de povos, etnias e respectivas cosmovisões.

A simplicitude alegada de que somos uma nação, formada por povos indígenas, portugueses e africanos, não corresponde à verdadeira amplitude da composição do povo brasileiro. Ainda há muito a ser pesquisado, resgatado, conhecido e acrescido a nossa história nacional. Populações indígenas, com sua pujança, plenitude e variedade cultural; a realidade dos habitantes não nativos à época do descobrimento; dos emigrantes vindos da Península Ibérica; os africanos trazidos para o Brasil; os demais agrupamentos étnicos que aqui chegaram ao longo de todo esse período de tempo até nossos dias.

Os interesses relacionados à manutenção do poder pelos colonizadores, fizeram com que as informações fossem inicialmente submetidas as suas análises e censura, e essa prática continuou sendo praxe pelos seus sucessores no comando sociedade brasileira. Essa ocultação, sonegação ou encobrimento da verdade, equivale ao erro da intenção de mentir, falsificar e enganar.

Ainda não são totalmente conhecidos todos os elementos formadores da atual argamassa da nação brasileira, mas o acesso ao conhecimento nem sempre é fácil e o conhecimento existente nem sempre é exato e acessível. A partir da última década do século XX, surgiu um clamor revisionista sobre vários pontos da historia oficialmente conhecida. Por exemplo: Com a chegada do colonizador português em abril de 1500, as populações aqui encontradas, constituídas por povos organizados em nações e tribos indígenas, foram submetidas a tudo aquilo que com conceitualmente faz parte do ato de colonizar.

O Brasil, teria sido descoberto por Pedro Álvares Cabral, apesar de estudiosos como Carolina de Michaellis insistirem e sustentarem na teoria do “achamento”. Aliás, em 1498, 2 anos antes de Pedro Álvares Cabral, o navegador Duarte Pacheco Pereira, autor doEsmeraldo de Situ Orbis informava a Dom Manoel I, O Venturoso, sua chegada ao Brasil. Coincidentemente ou não, ele testemunhou a assinatura do Tratado de Tordesilhas, assinado em 7 de Junho de 1494, 4 anos antes de chegar ao Brasil e 6 anos antes de Pedro Álvares Cabral. É verdadeiramente espantoso o fato da acuidade visual que proporcionou, em termos cartográficos, a divisão territorial da América do Sul, entre Espanha e Portugal, de algo que para o conhecimento da época, não existia.

Outras questões nos trazem uma infinidade de aspectos quanto ao que poderíamos de chamar de bases sociais das populações nativas aqui existentes. Sua diversidade cultural, diferentes níveis de cultura e sabedoria, origens e há quanto tempo essas populações existiam organizadas como então estavam organizadas, coisas que provavelmente nem passaram pela cabeça dos colonizadores.

Passado o período entre 1500 e 1534 e a partir daí até 1549, com a primeira e a segunda formação das Capitanias Hereditárias, fracassada a tentativa de promover a economia colonial com a escravização dos nativos brasileiros, que foram submetidos direta ou indiretamente a um genocídio, e a sua substituição por africanos trazidos ao Brasil, para servir de força motriz para a extração de riquezas por aproximados 400 anos de flagelo, injustiça e crueldade. Quanto foi ocultado ou deixou de ser observado, a pretexto de superioridade cultural, racial, religiosa ou mero interesse econômico ? A chegada do “Santo Ofício” em 1592, as invasões holandesas e francesas, tudo isto interligado de forma direta ou indireta aos procedimentos praticados na colônia e no império, para a manutenção do poder de uma elite, até a República do Brasil.

Em especial, essa invisibilidade, fosse por desconhecimento, fosse por ocultação da realidade dos fatos e das circunstâncias, e até das qualidades do outro, produziram sobre o diferente, desafortunado ou somente discriminado, uma série de outros dramas, por vezes insolúveis do berço a sepultura. Ainda ecoa sobre o Brasil, aquilo que o Professor Darcy Ribeiro indagou na apresentação da sua última obra “O Povo Brasileiro” : – Porque é que o Brasil ainda não deu certo ?   Com a aproximação do último século da escravidão legal, a partir da proibição do tráfico de escravos pelo império inglês, e o mercado paralelo que valorizava mais ainda a “mercadoria”, já proclamada a Independência por Dom Pedro I em 1822, o Brasil Império, ainda estava atrelado a Portugal, que por sua vez dependeu da Inglaterra, que foi alçada a condição de agente de comércio de todos os produtos exportados pelo Brasil. Em janeiro de 1835, depois de muitas outras revoltas na Província da Bahia, em meio a um conjunto de crises econômicas, algumas delas promovidas pela falsificação de moedas da época, ocorreu a Revolta dos Malês, e em 14 de maio de 1835, 5 muçulmanos, (o primeiro deles um escravo nagô de nome Joaquim), após condenação judicial, foram fuzilados.

A quase total invisibilidade da presença muçulmana no Brasil, talvez fruto do desprezo ou de uma censura vigilante, sob aqueles que vieram da Península Ibérica e da África, não pode ser justificada pela falta de conhecimento dos poderosos de então. Quanto aos que vieram da África, somente no final do século XIX, por nomes como os etnólogos Raimundo Nina Rodrigues e Arthur Ramos, foram objeto de explicação “científico-etnológica”. Quem sabe, a quantas andou a teoria de César Lombroso e que definia toda pessoa fora do padrão de beleza européia como portador de uma patologia que ficou conhecida como “perfil do indivíduo lombrosiano”.   Ainda sobre a já mencionada invisibilidade dos muçulmanos no Rio de Janeiro,  em relatos do viajante inglês Richard Burton, no século XIX,  observou a pequena África na região da Gambôa, no Rio de Janeiro, à época do Cais da Imperatriz, da Pedra do Sal, do Mercado de Escravos e da vala comum, chamada de Cemitério dos Pretos Novos, criado em 1722, no Largo de Santa Rita,  próximo ao chafariz situado na frente da igreja do mesmo nome, (atualmente av. Mal. Floriano com Largo de Santa Rita, transferido pelo Marques de Lavradio em 1779 para a rua da Gambôa, nas imediações do então mercado de escravos do Valongo.

Hoje na atual rua Pedro Ernesto n.º 36, existe uma placa que informa ser ali o”Sítio Arqueológico do Cemitério dos Pretos Novos”, parte de uma área estimada em “50 braças em quadra” (sistema métrico daquela época). Muitos dos aproximados 6.000 corpos que ali foram jogados, por observações nas amostragens dos ossos encontrados durante os  trabalhos de salvamento arqueológico realizados por ocasião do encontro de parte dos ossos no ano de 1996, eram de muçulmanos, que não se recuperavam da travessia do Oceano Atlântico, no período de quarentena para recuperação dos maus tratos e péssimas condições de alimentação, sem higiene e por vezes até sem água para beber. (videwww.pretosnovos.com.br).A Gambôa, era reconhecida como ponto de concentração de africanos escravos ou libertos, de maioria muçulmana, trabalhadores da estiva e demais serviços relacionados ao porto de então. Na rua Barão de São Félix, segundo relato João do Rio, pseudônimo de Paulo Barreto, cronista do Rio Antigo, em “Religiões do Rio”, funcionava uma antiga sociedade beneficente, que existia desde o século XVIII, onde reuniam-se africanos e árabes para as orações islâmicas.

Na segunda etapa da expansão européia, surgiu o “fardo civilizatório do homem branco”, que pretendendo “civilizar”, continuou o trabalho etnocêntrico e xenófobo para o submetimento e saque de suas vítimas.  Igual a vários outros pretendidos até os dias de hoje, espalhando a “democracia global”. A utilização das informações e da transformação de mentiras em verdades, até que o próprio mentiroso acredite nela, ou da ocultação da verdade de acordo com o “interesse legítimo”  coincidem com o que Maquiavel escreveu no livro O Principe. O fim da escravidão legal em 13 de maio de 1888, 53 anos depois do fuzilamento dos muçulmanos na Bahia, e de tantos outros mortos anonimamente através dos séculos no Brasil; chegou  a República,  e com ela, logo a seguir, a Guerra de Canudos, onde foram dizimados cidadãos brasileiros que resistiram a corrupção e ao abuso de poder,  acusados de serem “monarquistas”;  A “queima dos documentos” por Ruy Barbosa, a política de branqueamento da sociedade brasileira, não foram suficientes para dotar os ex-escravos já nascidos no Brasil ou vindos da África, das condições necessárias a uma Justiça Social e a restituir-lhes a dignidade humana. Depois surgiram teorias como a da Democracia Racial descrita por Gilberto Freyre. Surgiu então o drama social que até hoje desencadeia tragédias e dramas pessoais e coletivos, em meio a este mundo globalizado, dominado hegemonicamente por um país, conhecido pela sua economia e seu poder bélico, do chamado Primeiro Mundo, enquanto nós, de acordo com o esteticismo dominador, ainda somos do Terceiro Mundo, não alcançando sequer o “Segundo”, que ninguém ainda disse onde fica. À partir de 2002, com a criação de organismos governamentais à nível federal, tais como o CNPIR – Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial órgão da SEPPIR – Secretaria Especial para Promoção de Políticas de Igualdade Racial da Presidência da República, e da Secretaria Especial de Direitos Humanos, ambas com status de ministério, iniciou-se um trabalho que busca o diálogo para mútuo conhecimento, compreensão e alcance de vários problemas sociais havidos pelo desconhecimento ou pelo desrespeito ao próximo.

Em 2005, várias conferências a nível municipal e estadual por todo o Brasil aconteceram, preparatórias da conferência nacional havida no final de julho e início de agosto de 2005, cujas recomendações visam atender a inúmeras questões raciais, étnicas e religiosas da realidade brasileira.  Na cidade do Rio de Janeiro, coincidentemente, a conferência foi iniciada em 14 de maio de 2005, 170 anos depois do fuzilamento dos muçulmanos. No âmbito do chamado diálogo inter-religioso, a partir da iniciativa do Professor José Flávio Pessoa de Barros, à época decano do Centro de Ciências Sociais dessa UERJ, e de convites formulados pelo mencionado decano e pelas professoras Maria Teresa Toríbio Brittes Lemos, Edna Maria dos Santos e pelo professor Lamartine Boechat, participamos de vários simpósios sobre cidadania e religiosidade, cursos de história, semanas de cultura, debates, juntamente com outras denominações religiosas e étnicas, proporcionando um novo ânimo a todos que buscam o diálogo para a compreensão e o encontro das soluções que todos nós necessitamos. A criação de programas de estudo e pesquisa como o Pró-AFRO, o Pro-EPER, o Pró-EALC e o Programa de Estudos e Pesquisas sobre a Arqueologia Brasileira,  também nesse mesmo período,  permitiu os primeiros trabalhos de aproximação e diálogo inter-religioso no ambiente acadêmico.

Atualmente, a comunidade muçulmana de toda a América Latina, e em especial do Brasil, participa de vários trabalhos e grupos de diálogo inter-religioso, comissões de ensino religioso e trabalhos afins, buscando também desenvolver trabalhos de pesquisa histórica. Permita Deus, O Altíssimo que o empenho em busca de todas as soluções necessárias não embotem a noção de respeito e fraternidade para com todos, respeitando para ser respeitado.

Esperamos que dessa forma, tenhamos conseguido fornecer um panorama retrospectivo quanto aquilo que observamos e o que esperamos ver florescer nos corações de todos nós.

Que a PAZ esteja sobre todos os que buscam a verdade e a fraternidade sincera !


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