Um Islão em que as mulheres jantam com os homens

Chã, Loureiro, Cimo de Vila. Três ruas de um Porto escuro, pintalgadas de islamismo e muezins como banda sonora. Os animais morrem em nome de Allah. O trabalho pára uma hora à sexta-feira. Em paz.

O relógio que está certo, apesar de o tempo não lhe correr nas veias, é o primeiro a contar de baixo. Um despertador de plástico vermelho, apontado para as duas horas. Da tarde. Kamran posta-se frente à coluna de horas paradas, tapa os ouvidos, fecha os olhos e ausenta-se do tempo.

À volta dele, carreiros de homens descalços esgueiram-se para a sala. Kamran entoa o adhan (chamamento). É sexta-feira, hora de salat (oração) na mesquita entrincheirada na travessa do Loureiro, acima dos comboios de S. Bento. E ele é o muezim.

O Islão, no Porto, vive-se à medida das possibilidades. E sente-se com simplicidade, de mãos dadas com aquele pequeno pedaço de Portugal, pouco mais do que um nó na malha da história portuense: o Cimo de Vila, a Rua Chã e a do Loureiro. Com a estação ferroviária na base e o amarelo torrado do Teatro Nacional S. João a dominar o morro da Cividade. Outrora eldorado das pechinchas mecânicas, berço de uma das maiores cadeias de lojas de electrodomésticos do país, lar de algumas das tascas mais típicas da Invicta e posto de trabalho – ainda e sempre – das aliviadoras dos males de alma masculinos.

Continua assim o lugar. Casas do passado, calçada incerta, cortinas à entrada dos albergues, as incontornáveis peles da Casa Crocodilo, as mulheres garridas e, agora, as vestes igualmente garridas das mulheres pudicas. Muçulmanas, na maioria de raiz oriental, com todo o festival de cor que isso significa, cruzam a rua de criança pelo braço, indiferentes às cristãs de baton e unha vermelha. “São elas que dão aqui negócio”.

Elisabete, portuguesa desgastada com o desemprego do sector têxtil destruído pelos chineses, arrumou a agulha e vestiu o avental. Serve no Taj Mahal. Caril intenso no ar, patrão escuro como as montanhas do Paquistão, paredes meias com uma dessas entradas de cortina enegrecida. Ali dentro, há Islão e doner kebab a girar. No descanso da tarde, há mulheres da vida e muçulmanos com t-Shirt sobradas do Euro 2008. A estimular Portugal. Tudo na paz.

Outro mundo sobre a estação

Mais do que viver, os muçulmanos do Porto trabalham ali. Nas mil lojas de roupa barata e colorida, até às oito da noite, para aproveitar as saídas dos comboios em hora de ponta. Falam como sabem. Mal, metade deles, nada, a outra metade. A metade feita de mulheres e crianças, poucos véus, o calor do Oriente flexibilizou as interpretações do Alcorão. Muitas chegaram nos últimos meses, o reagrupamento familiar, aqui, ainda é difícil. Cheira a Índia. Ou Paquistão, ou Bangladesh. É igual. Ou à parte de Moçambique feita de Índia, mesmo respeito pela religião.

No largo, Altaf descansa das festas de Freamunde, para onde foi tentar vender a tenda. É dos poucos que vivem na Rua do Loureiro, mulher e filhos importados do Punjab paquistanês há seis meses. Quase não sabe português, apesar dos sete anos de vida em Portugal. Com ele, um grupo de dois ou três homens, mais adiante outro. É normal nos fins de tarde. Está calor, trocam o Taj Mahal pela rua, olham desconfiados para a máquina fotográfica e dão discretamente sinal à mulher que assoma a uma das varandas. Apesar de andarem soltas, as mulheres precisam de autorização masculina para aparecer. Queríamos conhecer a dele, de Altaf, até já a víramos passar, escondida pela pressa. Não vai ser possível, Altaf não pode estar em casa.

Abdul, estudos de ciência política terminados no Paquistão abandonado há seis anos, explica que é assim e pronto. Em casa dos outros. Na dele, partilhada com a esposa portuguesa, o jovem de 30 anos adaptou as regras. “Viemos para cá. Temos que mudar”. Guia-nos pelos 75 degraus que conduzem à pequena mesquita da Travessa do Loureiro. Num patamar intermédio, os gatos saltam sobre as torneiras para as abluções, água que purifica por fora para melhor receber a purificação por dentro.

À vista, um postal do Porto. Torres e sinos de igrejas a tocar enquanto Kamran encanta os fiéis. Nesta sexta-feira são mais de cem. Por ser sexta-feira. Domingo no Islão. E por ser sexta-feira, dia de trabalho em Portugal, é que a reunião se faz às duas da tarde. Nos outros dias, dizem os despertadores vermelhos da mesquita, a oração é ao fim da tarde. Ou de manhã. Vem quem pode. E também por ser sexta-feira, Idris Ahmed pediu a Farzana, com quem partilha os dias e três filhos, para preparar uma baciada de gulab jamun, iguaria doce de farinha mergulhada em xarope de água de rosas e cardamomo, para os fiéis que vêm de mais longe – também os há – aconchegarem as entranhas depois de purificadas.

Flores e caril com os Anwar

Sabe extraordinariamente bem. Oferecida como sobremesa numa viagem ao Islão oriental, servido à mesa da família Anwar, ali nas margens da Praça dos Poveiros. É uma das menos de duas mãos cheias de famílias paquistanesas já reagrupadas no Porto. A alegria em forma de apartamento. Zulficar brinda-nos com a sabedoria de um português aprendido em oito anos de operariado abrilhantado com um ano de aulas na Junta de Freguesia do Bonfim. Essa mesma que oferece a quem entender a possibilidade de se integrar um pouco mais.

Casa espartana, paredes nuas ou quase, andar do Estado Novo e móveis talhados do passado português. Zulficar, 50 anos, viveu aqui sozinho até há cinco meses. Até que Zaida veio encher aquele T3 com o seu sorriso interminável. Faz de conta que usa véu, é mais um lenço de seda que ora cobre o cabelo arrepanhado, ora cai para o pescoço, sobre o sari rosa forte.

Atrás dela, Mariam, cinco anos de curiosidade, e Ali, 15 anos, ligeiro atraso mental e a necessidade de mostrar que sabe falar português. “Boa tarde! Bom dia!” Porque é Verão, a diáspora marcou encontro. Misba, sobrinha do patriarca, veio de Logroño, em Espanha, descansar o ócio. Trouxe Amza, reguila enturmado, castelhano sem falhas, e Fátima. Casa cheia.

Do novo, o odor a caril. Zaida atarefa-se na cozinha impecável. Três panelões borbulham à espera dos convivas, enquanto na sala Zulficar explica a vida. Não quer a mulher a trabalhar, diz a rir, e logo corrige: quando ela souber falar. E conta dos dois filhos de oito e 12 anos que ficaram no Punjab com a avó. Questões burocráticas, nem tudo é tão fácil quanto parece. Que o diga Abdul, cuja renovação da autorização de residência foi recusada porque foi passar uns meses a Inglaterra, divorciou-se e perdeu-se nos prazos, mas não nas contas – nunca deixou de descontar para a Segurança Social e o fisco. Tem fé.

As crianças correm pelo corredor. Sinal de que a família se voltou a reunir, há flores de plástico pela casa. Nas cortinas, na jarra do corredor, nos quartos. O Oriente no seu melhor. Toca o telemóvel, toque de sitar, sonoridade de Shankar. Todas as semanas se fala dali com o Paquistão. Cinco euros de cada vez.

Zaida traz o chapati para a mesa. Feito por ela, é o pão típico de todas aquelas paragens que foram, em tempos, apenas e só a Grã-Bretanha do lado de lá do Planeta. Enquanto distribui arroz basmati, caril de frango e chanan, uma especialidade de grão de bico, Zulficar explica o único quadro da casa, além da fotografia do sobrinho falecido. O Paquistão rural, mulheres a levar lassi, a bebida de iogurte punjabi, e chapati ao homem que trabalha no campo. É parecido com a aldeia de onde veio. A aldeia onde deixou costumes islâmicos mais arreigados.

Zaida senta-se à mesa contando, em urdu, a simpatia dos portugueses, a amenidade do clima, o racismo que não sente. “Na minha terra, as mulheres comem de um lado, os homens do outro. Mas aqui não. Entraste em minha casa, aqui comemos todos juntos”, diz Zulficar. Há salada de pepino e, no fim, gulab jamun. Com chá “paquistanês”. Forte, libertado em leite com cardamomo. Tradição oriental. À mesa, a tradição muçulmana está no frango. “Halal”.

“Allauh Akbar”, oração da carne

Foi comprado na rua cruzada com o Cimo de Vila. Acima da montra, o velho letreiro ainda clama “Talho da Rua do Cativo. Carnes Frescas e Fumadas”. Haddach não quis mexer na história. O nome do lugar, o verdadeiro, está impresso em folha A4. Em português e Árabe. “Talho Halal Cidade-Iman Lda”. Na montra, em vez de carnes, um tajine, Meca e mercearia árabe. Abriu há ano e meio, ali por ser ali que os muçulmanos confluem. Pela mesquita, pelas lojas, pela mercearia indiana.

Haddach é marroquino, de Ouarzazate, terra de fitas hollywoodescas. Deixou lá a mulher e dois dos três filhos. O mais velho fez-se à vida em França. Não seguiu as pisadas do pai, que escolheu, sabe Alá porquê, as obras em Portugal. Veio cá parar em 2001, aos 40 anos, depois de uma passagem por França para se legalizar.

“Os portugueses receberam-me bem”. Ao ponto de, em Fevereiro, Haddach ter pedido a nossa nacionalidade. É definitivo. O pedido de reagrupamento familiar entrou no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras há um mês. Foi na onda de outros homens cansados de estar sozinhos, moda que cresceu de há uns três meses para cá entre os marroquinos. São poucos por cá, França e Espanha oferecem mais.

O segredo é quase nenhum: virar o animal para Meca, dizer “bismillah allahu akbar” (“em nome de Deus, Deus é grande”), cortar-lhe o pescoço de orelha a orelha e deixá-lo sangrar até ficar exangue. “Se cortar só um bocado há veias em que fica sangue. E o sangue tem bactérias”. Há fotos na parede, do matadouro de Famalicão onde Haddach vai cortar pescoços com as próprias mãos. Só mata quem sabe.

O negócio vai correndo. Vende tudo menos porco. Há portugueses a comprar ali. Muçulmanos vindos de Vila do Conde. Outros do Porto, onde se espalham. É assim a comunidade. Livre e dispersa. E prática. Os lojistas dali é que pagam a renda da mesquita da Travessa do Loureiro. E o salário de Idris Ahmed. Haddach também contribui. São dele uns dos incontáveis sapatos que vão escondendo os 75 degraus a caminho da oração.

Tem que estar tudo limpo. A alma e o corpo, a roupa e os pés. Começa-se pelas mãos, a boca e o nariz. Depois purifica-se a face. Lavam-se os braços e a cabeça. E, no fim, os pés. Em casa ou na mesquita.

Os sapatos ficam à porta. Porque pisam a sujidade do Mundo. Higiene e reverência. Porque Deus disse a Moisés, na montanha, “descalça-te, que estás num lugar sagrado”. Faltam as mulheres. Vêm pouco. Estão dispensadas pelas regras. Só os homens têm que orar em local público, elas purificam-se em casa. Idris aponta, no entanto, o minúsculo espaço reservado às que entenderem “juntar-se”. Atrás de uma parede, longe da vista e do contacto próximo, corporal e visual, de pé ou em prostração, que a oração implica.

……………………………………………………………………………………………………………………………..

http://www.jn.pt


Comments

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *